Os anos passaram mas a história continua intacta, pois são lembranças vivas fincadas na minha memória e presentes no meu cotidiano. Assim, lá estou eu, novamente, na antiga rua da minha infância, composta por casas simples, a maioria com uma porta de entrada e duas janelas laterais; um enorme corredor e vários quartos contíguos; piso de tijolos ou cimento queimado e sem nenhum toque de embelezamento. No longínquo tempo, revejo o vai e vem das pessoas sobre um calçamento de pedras toscas; crianças alegres, saltitando pelas calçadas, cães soltos, acompanhando seus guias, burro e jegue com cangalhas e pesados caçuás, transportando vasilhames com leite, para venda de porta em porta, canecos de madeira com água potável e lenha vindos de muito longe, tangidos pelos sofridos animais, à custa de chicotadas ou cipoadas. Mulheres com trouxas de roupas na cabeça, bacias ou cuias nas mãos, indo lavar roupas na margem do rio, acompanhadas da filharada. O vizinho com uma espingarda de caça no ombro, vindo das tocaias da noite. O meu pai, sentado em uma cadeira de madeira e couro, na soleira da porta da frente, proseando com quem passava e, muitas vezes, adquirindo a carga do animalzinho, já cansado, para poupá-lo daquele sofrimento. Uma vizinha, religiosa fervorosa, sempre com seu vestido branco e um véu na cabeça, morava sozinha com o seu cão, numa casa humilde, sem janela, e em que nunca entrou nenhuma visita, e sua missão principal era levar as crianças, no fim da tarde, para o salão paroquial e prepará-las para a primeira Eucaristia. As três irmãs idosas que residiam numa pequena casa, sempre saíam juntas, em fila, e costumavam comprar, cedinho, um corredor de boi, como era chamado no velho mercado de carnes, e o amarravam na madeira exposta do telhado, sobre uma panela que preparava o feijão do almoço, num fogão a lenha, e temperado com os pingos de gordura soltados do apetitoso corredor, que era reaproveitado para a próxima refeição. Olhando mais adiante, vislumbro uma senhora idosa e amiga, sentada numa cadeira de balanço, que costumava dividir o pouco das iguarias que tinha com as pessoas que a visitavam. No meio do logradouro, um caminhão com água potável para venda aos moradores, em latas de querosene, e a meninada admirada e disposta a empurrar o velho carro, se não funcionasse com ajuda de uma manivela. O vendedor, vizinho da esquerda, desfilava com o seu colorido carrinho de algodão-doce, à noite, que era um deleite para a gurizada. Enfim, saudosa em minhas reminiscências, vividas ao longo do tempo, memórias de uma infância feliz e permeada de tantas outras histórias a serem ainda contadas.