PEQUENA MENINA
Numa revirada no fundo do meu baú, bem lá num amontoado de lembranças, deparei-me com a garotinha de apenas cinco aninhos de idade, cabelos em desalinho, currulepe de couro cru, vestido rosa com florzinhas, caminhando devagar com uma cesta de palha na mão, ainda escuro, e enfrentando o frio do sertão, comum antes de o sol nascer. Era, assim, diariamente, o início da labuta da pequena menina, percorrendo ruas acidentadas, rumo ao mercado de abastecimento da pacata cidade, de onde retornava com carne, toucinho, verdura para o almoço do dia, sem esquecer o milho para as galinhas, criadas no quintal da moradia. Era tão criança que não tinha ainda dimensão de localização, se subia ou descia para chegar à casa onde morava, às margens da linha do trem. Um adulto, que também lhe fazia companhia, na ida ao mercado, deixava a menina na esquina de uma rua ao lado, para que continuasse seu trajeto de volta. Numa dessas manhãs, por não ter sido bem orientada, retornou por outro caminho e, nas minhas memórias, encontrei-a chorando com medo, apavorada, literalmente perdida, sem rumo e ainda temerosa de ser castigada pela dona da casa, que já aguardava a menina com um alguidar de barro, cheio de louças sujas e azedas, que lhe causavam náuseas, pelo fedor que soltavam, e que era sua segunda tarefa do dia, deixá-las limpas e enxutas, para novamente serem utilizadas durante mais um dia. Triste, a menininha pensava que naquela manhã não teria tempo para olhar da soleira da porta a gurizada vizinha brincar com as suas bonecas, carrinhos e um lindo velocípede vermelho que, às vezes, ao ser deixado na calçada, por algum tempo, aproveitava para dá a costumeira voltinha, mas sempre de olho para não ser notada. Adorava ver a Maria Fumaça passar, apitando, com inúmeros vagões, e fazia lembrar a sua mamãe que morava no sertão, e imaginava o que poderia fazer para embarcar naquele trem para ir ao seu encontro. Revejo a pirralha na sala de visita da casa da rua azul, olhando para três quadros na parede, feitos de madeira com casinhas coloridas, onde com alegria ela cantava: "Se essa rua se essa rua fosse minha eu mandava eu mandava ladrilhar com pedrinhas com pedrinhas de brilhantes para o meu para o meu amor passar" [...] Um alento para o seu doce coraçãozinho, repetia sempre que a sua irmã saia para visitar a amiga que morava à esquerda da rua. Relembra também a felicidade da garota quando, numa noitinha, um irmão e uma irmã, mais adultos, foram buscá-la para, na madrugada, embarcarem no trem de passageiros para a fazenda, distante 24 km, onde seus pais residiam, na época. Enfim, a pequena, ansiosa, guardava o instante de abraçar a sua mamãe, escutar as histórias do seu pai, rever o seu gatinho, brincar com os diversos cachorros, falar com o papagaio e pinotear pelos verdes campos do seu amado sertão, onde poderia viver a liberdade de ser criança. E, para completar a felicidade da menina precoce, sua mãezinha, num gesto de amor materno, não a deixou voltar para a vida dura da cidade.
Maria de Fátima Fontenele Lopes
Enviado por Maria de Fátima Fontenele Lopes em 10/10/2022
Alterado em 24/12/2022