A CABEÇA É DO DONO
O senhor Raimundo era um antigo morador de uma propriedade rural nos confins do árido sertão do Ceará, onde residia com a mulher Maria e os filhos João e Rita. Rita se casou com o primo Francisco. Pouco tempo depois, deixando um filho recém-nascido, rumou para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de vida, ficando a esposa Rita na companhia dos pais dela. Trabalhando como porteiro de condomínio, sempre que possível vinha ao Ceará, trazendo ajuda financeira para a família, isso fazendo por alguns anos. Dias após o seu retorno à cidade maravilhosa, recebia uma carta da esposa RIta, comunicando que estava novamente grávida. Para a vizinhança fofoqueira e curiosa, a costumeira vinda do marido se resumia em fazer mais um rebento, deixando todo o trabalho da criação com a mãe e a avó. Felizmente, o Francisco não arranjou outra mulher e, depois de alguns tempos, retornou definitivamente para o seu amado lar. A casa velha de taipa e alpendrada ficava num alto em um lugar descampado, vista bonita, de lá dava para observar toda a vizinhança, nas humildes casas, algumas à beira da linha do trem. Pai e filho trabalhavam na roça, em terras alheias, mas viviam razoavelmente bem, pois cada um tinha o seu bom cavalo de passeio, criavam dezenas de caprinos, porcos, umas três vacas no curral, que lhes proporcionavam leite suficiente para uma saborosa coalhada, servida à noite na ceia, e ainda a fabricação artesanal de pequenos queijos para o consumo, sem contar com a criação de galinhas e capotes que, aos domingos, serviam para o preparo do esperado e saboroso almoço. Além dos roçados de milho, feijão e algodão, produziam fumo no cercado atrás da casa, produto muito vendido na época, para o feitio de cigarros em papelotes para uso próprio, o pó ou tabaco, muito usado para aspirar nas narinas, produto viciante que provocava espirros, na época usado até por crianças, quando estavam com o nariz obstruído. Seu Raimundo era uma pessoa receptiva, principalmente com o compadre Antônio, proprietário da fazenda vizinha e que residia numa cidade próxima, sendo sempre recebido com honras e um dos poucos a deitar-se na preguiçosa de madeira de lei, que tinha um banquinho acoplado, para descanso dos pés, instalada na sala principal e reservada às visitas especiais. O café do compadre Antônio era servido em xícaras diferenciadas e, encerrada a visita, era feito o convite para participar da tradicional ceia da noite. Pai e filho se davam muito bem e conviviam com mútuo respeito. Os dois firmaram um acordo para que fosse feito o rodízio na matança das criações de ovinos e caprinos e cabia ao proprietário da que fosse abatida no dia o direito de saborear a cabeça, muito cobiçada no sarapatel e demais ingredientes da fussura servida no almoço. Em certo dia, num almoço especial oferecido ao compadre Antônio e família, foi a vez do bichinho do bode do senhor Raimundo ir para a panela. Era de praxe, o dono do animal abatido se servir primeiro no almoço, posto na mesa, mas por engano ou esperteza, João depressa e mais que ligeiro colocou a cabeça do bode no seu prato. O pai, de imediato, lançou um olhar atravessado e inquietante para o filho, que agoniado e desapontado, devolveu ao pai, rapidamente, por debaixo da mesa, a cobiçada cabeça. Os convidados entenderam a vexatória situação, porém se portaram com discrição, como se nada houvesse acontecido. O senhor Raimundo nutria um forte desejo de casar João com uma das filhas do compadre Antônio, o que reforçava ainda mais a paixão do filho por uma das moças disponíveis. E, se uma recusava o assédio, João partia para outra irmã, até que cansou de receber a recusa de namoro de todas elas. Mas, mesmo rejeitado, conversou com o compadre do pai, o pretenso sogro, manifestando a intenção de casar-se com uma de três de suas filhas, por quem tinha muita paixão. Seu Antônio, com sua maneira direta e sincera de agir, perguntou ao João: você está preparado financeiramente para se casar? O moço de imediato respondeu, timidamente: estou sim, pois já tenho meu cavalo, algumas cabeças de caprinos, dois bezerros, alguns bacurinhos e um alqueire de algodão. E, como utensílios para a casa, já adquiri uma mesa com 4 banquinhos, meia dúzia de pratos, colheres e xícaras, três panelas e uma cuscuzeira de barro. Mas era conhecido na redondeza por não ser disposto para o duro trabalho da roça, por isso a grande preocupação do senhor Antônio em não apoiar a paixão do filho do compadre Raimundo. No geral, eram pessoas boas, honestas, servidoras e muito acolhedoras. Aos sábados, dia de feira na cidade, selava seu cavalo e, com o filho João, partiam para a cidade, onde vendiam umas duas peles de carneiro, uns três queijos de sua lavra e faziam compras no mercado. ÀS 11 horas, o farto almoço já os esperava na casa do compadre Antônio, também muito receptivo para os vizinhos da fazenda. Seu Raimundo, esposa e filho tinham presença certa na noite de Natal na cidade, onde assistiam à missa do galo, à meia noite, pernoitando na casa do compadre Antônio. E assim, viviam o senhor Raimundo e família, entre a cidade e o sertão, sempre preservando a amizade com os amigos. Hoje, resta a saudade dessa família simples e laboriosa, e sempre lembrada pelos descendentes do compadre Antônio.